Da Crítica à Razão Instrumental até a Razão Comunicativa (parte 3)

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

    1. A “guinada lingüística” rumo a um conceito amplo de racionalidade.

Para uma análise fiel acerca da forma como Habermas busca tratar as outras duas dificuldades que encontra na Teoria Crítica (seu conceito de razão e ciência, e sua relação com as tradições democráticas da modernidade), é necessário, antes, buscar a fundamentação de sua resposta. Significa dizer: para Habermas, como exposto anteriormente, o caminho de volta do beco sem saída no qual se encontra a crítica à razão frankfurtiana é uma mudança de profundo impacto. O autor irá propôr um outro conceito de razão, que de seu ponto de vista apresenta-se como superior justamente por sua maior abrangência.

O objetivo de Habermas, ao formular a proposta da razão comunicativa é superar um conceito que julga demasiadamente estreito de razão. A concepção utilizada por seus tutores em Frankfurt identifica-a, apenas, à capacidade humana de conhecer1 os fenômenos a sua volta, possibilitando-os ao agir racional com respeito a fins2. Em via diversa, a proposta habermasiana busca identificar, na razão, suas dimensões diversas, capaz de fazer com que ela incline-se não apenas sobre os fatos objetivos do mundo, mas possibilite um julgamento cognitivista acerca de questões prático-morais e expressões estéticas3. Esta forma de racionalidade permitiria, dessa maneira, uma recuperação do projeto emancipatório original do Iluminismo, frente à desistência irracional advogada pela antiga Teoria Crítica e pelo pós-estruturalismo4.

Habermas fará, então, um caminho que, em primeiro momento, o levará a re-localizar o papel da filosofia na contemporaneidade. Se, no que se refere ao seu próprio lugar, a filosofia entendia-se enquanto indicadora5 do lugar de cada ciência, à antiga “rainha das ciências” o autor irá propôr um novo papel


de um guardador de lugar – um guardador de lugar para teorias empíricas com fortes pretensões universalistas, que são objeto de arremetidas sempre renovadas das cabeças produtivas em cada disciplina. Isto vale sobretudo para as ciências que procedem reconstrutivamente, partindo do saber pré-teórico dos sujeitos que julgam, agem e falam de maneira competente, bem como de sistemas epistêmicos da tradição cultural, afim de aclarar os fundamentos presumidamente universais da racionalidade da experiência e do juízo, da ação e do entendimento mútuo lingüístico.6


A passagem indicada acima traz, em um só espaço, três importantes elementos para a absorção da lição de Habermas. Primeiro, seu julgamento acerca da tarefa da filosofia contemporânea. Destituída seja das “esperanças ontológica” ou “que abrigaram a filosofia transcendental”7, hoje ela dobra-se sobre a questão da investigação das “hipóteses sobre competências e estruturas universais de conhecimento e ação8, permitindo que as disciplinas científicas as absorvam e as julguem de acordo com critérios empíricos.

O segundo elemento, volta-se ao conceito de ciências reconstrutivas. Essas, buscam o que o autor irá denominar de reconstituição reconstituinte do saber9. Ou seja, buscam, para além do conhecer do objeto puro e simples, típico das ciências nomológicas, as regras que são efetivamente seguidas pelos homens que agem e falam na busca do entendimento mútuo a partir de seu conhecimento pré-teórico e suas tentativas falhas ou bem sucedidas em alcançar esse objetivo10. Buscam dessa forma o know-how, do agir humano11. A fundamentação de uma pragmática universal, capaz de identificar, no homem comum, as competências presentes em todos que permitem a interação entre eles12.

Esse novo método identificado por Habermas será contraposto pelo próprio autor à tipologia das ciências que esse sugere em Conhecimento e Interesse. Como bem demonstra Antonio Cavalcanti Maia, o apego meramente às ciências empírico-analíticas, hermenêuticas e as orientadas em uma perspectiva crítico-emancipatória calhou de encontrar-se insuficiente. A aquisição de uma postura diversa, que valoriza as ciências reconstrutivas, permitiria, então a Habermas, melhor explorar os fundamentos do quê, em 1968 ele denominou de interesse voltado à emancipação13.

Isso nos leva ao terceiro elemento de grande importância na última passagem: o mútuo entendimento lingüístico. A importância dada à categoria da linguagem por Habermas vem desde os seus textos anteriores à Teoria do Agir Comunicativo. Já em Conhecimento e Interesse, o autor irá identificá-la como a característica da humanidade capaz de diferenciá-la, enquanto gênero do restante da natureza14.

Sob a alcunha de uma “ruptura cultural”15, Habermas irá identificar na interação entre os homens o modus operandi do agir humano universal. E à essa conclusão o filósofo pôde chegar, apenas, por utilizar-se de suas duas últimas concepções exploradas acima. A partir de uma realocação do papel do pensar filosófico, como um exercício de busca de competências universais da humanidade, somado às contribuições das ciências reconstrutivas, sobretudo a antropologia de G. H. Mead16 e as teses do desenvolvimento cognoscitivo de Piaget, bem como os desenvolvimentos da mesma apresentados por Kohlberg17.

Habermas fará uma comparação, em um sentido de afastamento, entre a categoria do trabalho e a da comunicação. Sob a lição de Mead, ele irá declarar que, ao contrário das antigas tradições filosóficas, que postulavam o surgimento do gênero humano, a partir de sua relação produtiva com a natureza, através da atividade laboral, da qual a vertente marxista figura o maior exemplo, seria a capacidade de interação que fundaria o homo sapiens. Chega a essa conclusão a partir de pesquisas que demonstrariam que, não apenas os homens, mas já os homínidas realizavam trabalho18. O surgimento humano dar-se-ia, então, a partir da substituição do sistema de organização societal animal, por um patamar superior: o da comunicação19.

Na comunicação reside um interesse básico da humanidade: o do entendimento mútuo20. Sem que essa possibilidade de chegar a um acordo entre aqueles que se expressam lingüisticamente, a própria comunicação não faria sentido. Os homens falam entre si apenas porque podem chegar a um consenso e a partir daí derivarem suas posturas e ações seguintes21.

Esse postulado fundamental irá permitir a construção de um diferente paradigma filosófico. O da filosofia da linguagem, que Habermas irá contrapôr ao antigo paradigma da consciência. O caminho a essa resposta torna-se, assim, bastante claro. Descoberta a competência universal da humanidade, a linguagem, e sendo entendida a filosofia como um exercício de busca das formas de agir que estão ao alcance de todos os homens, a pesquisa acerca da racionalidade volta-se, agora, para seu objeto munida de uma nova perspectiva. Esse, o objeto, permanece o mesmo, a razão. Porém, com o paradigma da linguagem, a razão reveste-se, ao contrário do que acontecia com a filosofia da consciência, de realidade objetiva, expressa nas estruturas da linguagem22.

A questão filosófica fundamental deixa de ser aquela postulada a partir do cogito cartesiano: “o que posso conhecer”. A filosofia da linguagem entende que a razão encontrará seu instrumento, justamente, nas estruturas racionais da comunicação. E Habermas justifica essa postura afirmando que “expressões gramaticais constituem algo acessível publicamente; nelas podemos adivinhar estruturas, sem sermos levados a nos referir a algo meramente subjetivo”23. A razão, que era entendida pela filosofia da consciência como um a priori, a cujo qual a tarefa filosófica poderia chegar diretamente, não gozaria mais dessa prerrogativa sob o paradigma da linguagem. Agora, pode-se chegar a ela apenas por uma via indireta, valendo-se da investigação das regras e estruturas sob as quais os homens valem-se da comunicação para expressar suas pretensões racionais24. E, por essa via, a questão fundamental da filosofia transmuda-se, a exemplo de seu paradigma, das capacidades cognitivas da razão, para suas capacidades compreensivas, traduzindo-se na pergunta fundamental: “O que posso entender?”25.

É a partir daí que ficam abertas as possibilidades de um revigoramento do projeto emancipatório do Iluminismo. Habermas quer demonstrar que as tentativas irracionais do pós-estruturalismo de construírem suas críticas à modernidade estarão, ainda, profundamente atreladas ao paradigma da consciência, ou seja, a um conceito de razão enraizado na figura do sujeito e formulado por uma filosofia da história, negando à racionalidade por apegarem-se a ele26. Sua proposta, do contrário, caminhará no sentido de uma recusa ao sacrificium intellectus da pós-modernidade27.

A resposta habermasiana parte da convicção de que sua negação ao paradigma da consciência é extremamente conseqüente, posto que, a ele, contrapõe um paradigma diverso que é capaz de explorar e expressar os limites daquele que supera. Negar o paradigma da razão centrada no sujeito permite a formulação de uma razão que encontrará suas bases, unicamente, no reconhecimento mútuo entre sujeitos que se ligam através de um exercício comunicativo28.

Daí surgirá o conceito de racionalidade que Habermas irá contrapôr à razão da filosofia da consciência:


Por “racionalidade” entendemos, antes de tudo, a disposição dos sujeitos capazes de falar e de agir para adquirir e aplicar um saber falível (…) assim que concebemos o saber como algo mediado pela comunicação, a racionalidade encontra sua medida na capacidade de os participantes responsáveis da interação orientarem-se pelas pretensões de validade que estão assentadas no reconhecimento intersubjetivo.29


Habermas irá contrapôr, então, à razão limitada do paradigma da consciência, que volta-se apenas sobre “um saber sobre algo no mundo objetivo”, que limita a racionalidade a critérios de “verdade e êxito” de um “sujeito que conhece e age segundo fins”, um conceito de racionalidade diverso. A razão comunicativa vale-se, não mais do sujeito que age e tem de agir isoladamente, mas do peso da intersubjetividade que é presente no agir racional da comunicação. A racionalidade torna-se, portanto, procedimental, capaz de voltar-se não apenas para o mundo objetivo, mas, igualmente, para questões de justeza normativa, veracidade subjetiva e adequação estética, que serão resolvidas segundo a interação e o conseqüente acordo entre os sujeitos que interagem, que avaliaram, através do diálogo, as pretensões de validade expressas nas posições de cada um30.

Dessa maneira, pretenderá Habermas ultrapassar o paradoxo em que cai a Teoria Crítica. Sua crítica à razão instrumental entende-a, portanto, como apenas uma dimensão da racionalidade humana. Através da filosofia da linguagem ele é capaz de estabelecer uma nova dimensão entre a razão e as ciências portanto. Uma dimensão de mútuo apoio, em que a filosofia prepara as hipóteses universais a serem testadas pelo saber científico, ao mesmo tempo em que se vale desse saber, que carrega consigo a marca de sua falibilidade. As conseqüências, evidente, não são apenas essas. São acompanhadas do revigoramento do projeto Iluminista de uma emancipação através do exercício da razão humana. Habermas pretende, portanto, não se afastar do projeto da modernidade, que considera inacabado, mas radicalizá-lo no sentido de um cada vez maior esclarecimento do esclarecimento, buscando a maioridade do gênero humano. A história da crítica à razão instrumental é, então, absorvida por ele apenas como a “história dos umbrais da emancipação da espécie”31.


1 “A razão centrada no sujeito encontra suas medidas em critérios de verdade do conhecimento de objetos e de suceso no domínio sobre objetos e coisas”. SIEBENEICHLER, Flávio Beno. op. cit. p. 63. Grifos nossos.

2“Tales nexos resultan particularmente claros en la obra de Max Weber. Su jerarquía de conceptos de acción está de tal modo planteada con vistas al tipo que representa la acción racional com arreglo a fines, que todas las demás acciones pueden ser classificadas como desviaciones específicas respecto a ese tipo”. HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: Racionalidad de la acción y racionalizaión social. Vol I. Madrid: Taurus, 1999. p. 22. “Tais nexos resultam particularmente claros na obra de Max Weber. Sua hierarquia de conceitos de ação está de tal modo apresentada com vistas ao tipo que representa a ação racional com respeito a fins, que todas as demais ações podem ser classificadas como desvios específicos com respeito a esse tipo” (Tradução livre).

3“En los contextos de comunicación no solamente llamamos racional a quien hace uma afirmación y es capaz de defenderla frente a un crítico, aduciendo las evidencias pertinentes, sino que también llamamos racional a aquel que sigue uma norma vigente y es capaz de justificar su acción frente a un crítico iterpretando una situación dada a luz de expectativas legítimas de comportamiento. E incluso llamamos racional a aquel que expresa verazmente un deseo, un sentimento, un estado de ánimo, que revela un secreto, que confiesa un hecho, etc., y que después convence a un crítico de la autenticidad de la vivencia así develada sacando las consecuencias práticas y comportándose de forma consistente con lo dicho”. Idem, ibdem. pp. 33-34. “Nos contextos de comunicação não somente chamamos de racional a quem faz uma afirmação e é capaz de defendê-la frente a um crítico, aduzindo às evidências pertinentes, senão que também chamamos racional a aquele que segue uma norma vigente e é capaz de justificar sua ação frente a um crítico interpretando uma situação dada à luz de expectativas legítimas de comportamento. E, inclusive, chamamos racional a aquele que expressa com veracidade um desejo, um sentimento, um estado de ânimo, que revela um segredo que confessa um feito etc., e que depois convence a um crítico da autenticidade da vivência assim desvelada sacando as consequências práticas e comportando-se de forma consistente com o que é dito”. (Tradução livre).

4SIEBENEICHLER, Flávio Beno. op. cit. p. 47.

5ARAGÃO, Lucia. op. cit. p. 96.

6HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 30. Grifos nossos.

7HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: Racionalidad de la acción y racionalizaión social. Vol I. Madrid: Taurus, 1999. pp. 16-17.

8ARAGÃO, Lucia. op. cit. p. 96.

9HABERMAS, Jürgen. O Discursos Filosófico da Modernidade. São Paulo: Martins-Fontes, 2000. p. 415.

10Idem, ibdem. pp. 415-416.

11BOHMAN, James, apud MAIA, Antonio Cavalcanti. Jürgen Habermas: filósofo do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 68.

12“A teoria da pragmática universal tem por tarefa específica identificar e reconstruir condições universais do possível entendimento”. HABERMAS, Jürgen apud SIEBENEICHLER, Flávio Beno. op. cit. p. 88.

13MAIA, Antonio Cavalcanti. op. cit. pp. 64-65.

14“Distingue-se este interesse da natureza mediante um dado fatual, o único possível de conhecimento por sua própria natureza: a linguagem. A emancipação é colocada por nós com sua estrutura. A primeira proposição expressa inequivocamente a intenção de um consenso universal e não a simples imposição”. HABERMAS, Jürgen. In: ADORNO, Theodor W., BENJAMIN, Walter, HORKHEIMER, Max e HABERMAS, Jürgen. Os Pensadores. Vol. XLVIII. São Paulo: Abril Cultural, 1975, p. 300.

15ARAGÃO, Lucia. op. cit. p. 85.

16REESE-SCHÄFER, Walter. Compreender Habermas. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. p. 65.

17“Habermas apresenta os trabalhos de G. H. Mead, M. Weber, É. Durkheim, J. Piaget e Kohlberg como modelos deste tipo de teoria, que une o método da reconstrução conceitual filosófica à pesquisa empírica propriamente dita. SIEBENEICHLER, Flávio Beno. op. cit. p. 55.

18HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 115.

19“Podemos falar de reprodução da vida humana, a que se chegou com o homo sapiens, somente quando a economia de caça é complementada por uma estrutura social familiar. Esse processou durou muitos milhões de anos; ele equivale a uma substituição, de nenhum modo insignificante, do sistema animal de status – que já entre os macacos antropóides se funda em interações mediatizadas simbolicamente (no sentido de G. H. Mead) – por um sistema de normas sociais que pressupõe a linguagem”. Idem, ibdem. pp. 116-117.

20V. nota 85 retro.

21“a competência específica da espécie humana de poder falar uma linguagem constitui a condição necessária e suficiente para que os homens cheguem à maioridade, à racionalidade”. SIEBENEICHLER, Flávio Beno. op. cit. p. 88.

22ARAGÃO, Lucia. op. cit. p. 92.

23HABERMAS, Jürgen apud ARAGÃO, Lucia. op. cit. p. 92.

24“E foi exatamente através desse recurso ao método reconstrutivo que nosso autor conseguiu propor outro conceito de razão. Esta, como ele a define, é uma razão 'situada', porque sua existência se revelou através de suas manifestações nas práticas e formas de vida humanas. A partir da análise da comunicação quotidiana, percebeu poder inferir uma competência universal a todo falante e agente (adulto e sadio): a capacidade comunicativa de dizer algo que se espera que seja compreendido pelo outro e sobre o qual busca a concordância. Esta capacidade, por sua natureza essencialmente dialógica e intersubjetiva, por sua vez, permitiria supor uma predisposição para o entendimento mútuo entre os homens, que se contraporia ao desejo de domínio da razão instrumental”. ARAGÃO, Jürgen. op. cit. p. 95.

25REESE-SCHÄFER, Walter. Compreender Habermas. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. p. 53.

26“Dos conceitos da razão centrada no sujeito e da ilustração marcante de sua topografia não poderá se livrar aquele que quer abandonar, junto com o paradigma da filosofia da consciência, todos os paradigmas em geral e refugiar-se na clareira da pós-modernidade”. HABERMAS, Jürgen. O Discursos Filosófico da Modernidade. São Paulo: Martins-Fontes, 2000. p. 431.

27Idem, ibdem. p. 431.

28Idem, ibdem. pp. 431-432

29 Idem, ibdem. p. 437.

30 Idem, ibdem. p. 437.

31 HABERMAS, Jürgen, apud SIEBENEICHLER, Flávio Beno. op. cit. p. 34.

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