sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Originalmente escrito para www.criticadodireito.com.br

O “Novo Século Americano” começa com revoltas pró-democracia no Oriente Médio

ELI MAGALHÃES


Uma década se passou desde o 11 de setembro em que o World Trade Center foi derrubado pelo atentado terrorista assumido por Bin Laden. Recentemente, a morte do líder do Al Qaeda foi motivo de um triunfante posicionamento do atual presidente dos Estados Unidos, Obama.

Dois dias após o atentado em 2001, Bush, então presidente estadunidense, declarou que os EUA empreenderiam um imenso esforço para proteger tudo o que fosse “justo e bom”. Em sua forma peculiar de ver o mundo, esta invectiva significava a apresentação de uma nova política. A política do “novo século americano”. Uma tentativa do imperialismo de estender por ainda mais tempo a sua hegemonia econômica e militar sobre o resto do mundo, transformando, inclusive, as grandes potências da Europa, em meros acessórios, a exemplo da Inglaterra.

Não tardou. A invasão do Afeganistão, seguida imediatamente pela ocupação do solo iraquiano, vieram a demonstrar fortemente o significado real disto. A defesa do que seria “justo e bom” significou o desrespeito à soberania de países independentes, bem como o verdadeiro rasgo de toda a cartilha de direitos humanos de uma população civil de cujos os mortos se contam às centenas de milhares.

Se a política dos EUA serviu para provar algo, foi a debilidade estrutural do sonho kantiano (e ainda neo-kantiano) de uma “paz perpétua” mundial ou cosmopolita, sob a sociabilidade do capital. Nenhuma outra instituição se mostrou mais débil do que a ONU durante todo este processo. Ignorando completamente as variadas formas de veto possivelmente existentes dentro dos trâmites da entidade, o exército norte americano, não só confirmou que “armas de destruição em massa” sob domínio Hussein não passavam de um conto de fadas, ao mesmo tempo em que o Afeganistão torna-se hoje, simplesmente, um campo de treinamento militar para os Estados Unidos.

Particularidade de Bush? Obama não apenas sofre críticas por não ter retirado suas tropas do Iraque, como prometeu em campanha. Além disto, a própria forma como o atual presidente escolheu para comemorar a morte de Bin Laden demonstra seu desprezo por qualquer regra de direito internacional. Tal captura e execução, ainda agora, representa à mais veemente repulsa a qualquer princípio jurídico de tal ramo. Qualquer respeito à democracia, por parte dos EUA, está submetida à defesa de sua “incontestável” hegemonia.

Obama continua. Quando de sua visita ao Brasil, no início de 2011, ele ordenou a intervenção da OTAN na Líbia. Por si só o ato já é bastante significativo. No entanto, não fossem as circunstâncias peculiares, ele não teria ganho uma cor ainda mais berrante. A ordem de intervenção desferida por Obama foi durante uma refeição no Itamaraty. O centro da diplomacia brasileira se tornou, por minutos, o quartel general dos senhores da guerra. Um desrespeito duplo à soberania alheia. Uma prova vergonhosa da subserviência do governo brasileiro.

Do outro lado da corda, as movimentações de massas voltam a acontecer. O mundo árabe chacoalha 2011 com a queda sucessiva de diversos governos ditatoriais. O imperialismo se vê obrigado a movimentar, mais uma vez, suas tropas para aquele ponto do mapa múndi. A presença da OTAN na Líbia é prova suficiente da ameaça que o “novo século americano” sofre pelas rebeliões populares que tomam o palco do Norte da África. Egito e Tunísia são ponta de lança de um processo que recoloca o debate acerca das potencialidades e da necessidade da democracia política, que respingou, por exemplo, na Espanha da “democracia real”.

Três ou quatro décadas de ditaduras, no entanto, foram suficientes para a perda de quaisquer referências organizativas por parte destas populações. A necessidade de reconstrução de agremiações democráticas e, inclusive, socialistas, nestes territórios é posta em voga pela história. O refluxo dos grandes movimentos do início do ano já apresentam retrocessos no processos de abertura democrática da região. Não a toa, no Egito, é o mesmo exército que sustentou o regime por 30 anos quem conduz a transição. Na Líbia, o Conselho Nacional de Transição conta com a presença de antigos homens de Estado de Kadaffi.

Isto não reduz a potencialidade dos processos, apesar de aumentar suas contradições e dificuldades. O mundo árabe pôs uma mancha profunda nos planos de manutenção da hegemonia por parte dos EUA. O “novo século americano”, ao demonstrar sua total desconsideração pelas garantias democráticas, deparou-se por uma luta espontânea e determinadas de populações esmagadas por décadas sob regimes autoritários. Se estas batalhas evoluírem até seu ápice, tomando outros continentes como vem acontecendo, estaremos talvez, vendo, na verdade, a “última década americana”.

A Superação da Dicotomia dever ser e ser como Tema da Pesquisa Filosófica do Marxismo sobre o Direito

terça-feira, 2 de agosto de 2011



A Superação da Dicotomia dever ser e ser como Tema da Pesquisa Filosófica do Marxismo sobre o Direito

ELI MAGALHÃES

A crítica marxista do direito tem contribuições de imenso valor no que diz respeito ao entendimento do fenômeno jurídico. A principal delas tem sido aquela que, com raízes no soviético Pashukanis, concebe a forma jurídica como correlata à forma mercadoria. Atitude tal que, segundo Karl Korsch, liga esta concepção àquela apresentada por Lukács em sua teoria da reificação.

Esta, contudo, parece-nos uma grande contribuição para a compreensão do direito em termos de uma sua teoria geral. Ou seja, em termos da explicação teórica acerca de sua ontologia, sua forma de ser, sua lógica de funcionamento, por assim dizer. Entender o direito ligado aos imperativos econômicos da sociabilidade burguesa é uma aquisição importantíssima para discussões estratégicas fundamentais no seio da esquerda: reforma e/ou revolução; Estado e transição ao comunismo; luta por direitos etc. No entanto, não se pode assumir que ela esgota toda a reflexão crítica a ser feita em relação ao tema.

Não querendo constituir divisões estanques, este texto preocupa-se com uma outra perspectiva que não a da teoria geral do direito, mas a da filosofia do direito sob um viés crítico e, especificamente, marxista. Tratamos aqui de apontamentos gerais, não especificamente de uma discussão teórica de fundo, que estaria absolutamente além dos nossos limites aqui. Optamos, por enquanto, por apresentar mais uma proposta, do que uma reflexão madura. Não se trata aqui, portanto, de um texto acadêmico, mas de uma proposta para debate. Esclarecimento que apenas consta aqui por conta do tema a ser abordado, que, com certeza, merece um retorno posterior com maior rigor teórico e formal.

A filosofia do direito, diferentemente de uma teoria geral, estaria preocupada não apenas com o entendimento do fenômeno jurídico enquanto tal, mas com sua relação com as diversas outras dimensões da, digamos, razão prática dos homens. É dizer, ao invés de entender a ligação do direito com as lutas de classe, com a economia política, com os interesses de classe da burguesia, como o fazem Pashukanis, Stuchka e outros, pensamos que aqui o mais importante cai para a relação entre, por exemplo, direito e moral, direito e ética, direito e práxis etc. O leitor verá que estaremos longe de explorar todas estas relações neste texto. Mas intentamos apenas apresentar um roteiro que nos parece ser promissor em relação a uma postura do marxismo frente à filosofia do direito: sua proposta de entendimento da relação entre valor e fato. Entre, em outras palavras, dever ser e ser. Um tema, como se pode perceber, completamente ligado à filosofia do direito.

Andrew Feenberg, em seu Lukacs, Marx and the sources of the Critical Theory, apresenta uma hipótese interessante de tratar as obras dos autores que constam de seu título como meta-teorias da filosofia tradicional. Não precisamos aceitá-la por completo. Mas podemos mantê-la naquilo que parece expressar uma boa chave de entendimento da relação entre Marx e toda a filosofia que o precede, especialmente a filosofia clássica alemã.

Com tal sugestão, Feenberg quer apresentar as obras de juventude de Marx (aqui deixaremos de lado a discussão apresentada sobre o jovem Lukács), como uma investigação acerca das antinomias da filosofia tradicional. Ou seja, uma espécie de crítica da ideologia da sociedade de classes. Evidente que, para tanto, Marx teria já de ter se apropriado da descoberta hegeliana de que a história possibilita a mudança das formas de pensar. No entanto, como mais tarde vai se transformando ainda mais claro no pensamento marxiano, a determinação social do conhecimento, no que diz respeito à filosofia, encontra, em diversas eras, um ponto em comum: a divisão de classes e a propriedade privada. Este solo comum teria permitido que as grandes questões da filosofia tivessem permanecido, em essência, as mesmas. Por exemplo, a dicotomia entre interesse privado e interesse público, presente já no pensamento dos gregos, e remanescente ainda em Hegel e no próprio Marx.

Marx teria inaugurado uma outra forma de filosofia ao estender a ação humana para além do campo da ética, da política etc. Com sua teorização acerca do trabalho como centro ontológico de auto-afirmação humana, ou seja, como a própria categoria que permite aos seres humanos existirem enquanto gênero que constitui a si mesmo e ao seu mundo, ele supera limites deixados pela filosofia tradicional. Marx historiciza de maneira materialista, portanto, as dicotomias enfrentadas pelos filósofos que o antecedem como valor e fato, dever ser e ser, forma e conteúdo etc., e compreende que sua superação não depende do exercício especulativo, como gostaria Hegel, mas da superação das condições históricas que impõem estas mesmas dicotomias.

Com isto, trata-se de encontrar no próprio solo social a origem de tais dicotomias ao mesmo tempo em que se busca na discussão filosófica de seu tempo inspirações à sua superação. Por exemplo, foi Kant quem declarou que o homem jamais deveria ser visto enquanto um meio, mas como um fim em si mesmo. O próprio Kant, contudo, não pôde perceber que a sociabilidade burguesa que dá bases à sua teorização força a utilização do homem como um meio quando o degrada a um ser estranhado em diversas dimensões como apresenta Marx em seus Manuscritos de 1844. O homem estranhado de sua atividade, o trabalho, estranhado dos outros homens, do gênero humano e da natureza.

Rousseau, a seu turno, vendo a civilização como espaço de degradação do homem que, em natureza, é bom, chega a declarar a propriedade privada como a origem da desigualdade humana, mas não é capaz de propôr sua superação. Não por acaso, sua filosofia política é carregada com um preenchimento moral. Por exemplo, a necessidade (e a fé) da virtude do cidadão que participa da assembleia e age em interesse de todos. Algo que o próprio Kant adota, entendendo isto como uma diferença entre o dever ser e o ser. Rousseau denuncia a “sociedade de calculadores” em que vive, onde todos buscam a degradação do lucro, mas encontra a solução para ela não na superação da propriedade privada, como Marx, mas na educação moral para uma vida não submetida aos ditames do comércio.

O pensamento marxiano não se caracteriza por abrir mão de toda a filosofia que o precede. Antes, critica-a justamente na intenção de preservar o seu núcleo racional. Com isto, a máxima kantiana do homem como um fim em si mesmo pode ser recepcionada por Marx. Mas não como um fato já dado ou um valor inalcançável. Seria, então, apenas uma possibilidade, uma potência humana, identificada pela filosofia tradicional, mas relegada ao plano especulativo por conta das insuficiências desta em superar o solo social em que vive.

A filosofia burguesa, em seus momentos de pico, teria desvendado chaves importantes para a compreensão das forças próprias do gênero humano, mas seu apego às condições históricas em que vive, é dizer, à divisão de classes e, principalmente, à propriedade privada, não teria permitido que ela colocasse tais potencialidades como centro de sua preocupação. Em suma, não teria permitido que ela vislumbrasse a superação material da dicotomia entre o dever ser do homem como fim em si mesmo, e o ser (realmente existente) do homem como um mero meio de satisfação de interesses egoístas na sociabilidade burguesa. Em outras palavras, a filosofia tradicional não poderia conceber outra sociabilidade que não a burguesa e, por óbvio, não poderia conceber sua superação histórica. Logo, não poderia vislumbrar, por exemplo, a revolução socialista, nem sua necessidade, nem sua mera possibilidade.

A revolução, portanto, não apenas liberaria o gênero humano do estranhamento (e da reificação, se quisermos incluir Lukács), mas cumpriria, também, o papel de realizar a filosofia. Ela resolveria antinomias que o pensamento especulativo, por si só, não pode resolver. Desta forma, a divergência entre dever ser e ser, teria de ser explicada a partir da ótica do dilaceramento do gênero humano provocado pela propriedade privada e pela sociedade de classes. A revolução, além de sua evidente natureza política, seria também uma exigência da razão. Razão esta que não existiria apenas na cabeça dos filósofos, mas que precisava de um correlato material. A filosofia precisaria ser realizada. O homem como fim, deixaria de ser um objetivo axiológico especulativo, para tornar-se quase que um programa, digamos, filosófico-político. Afinal, ao filósofo não seria apenas permitido interpretar o mundo, mas também transformá-lo.

As antinomias identificadas pela filosofia burguesa seriam dadas por tendências e contra tendências realmente existentes na vida social. Evidente que as soluções especulativas não seguem esta lógica em sua totalidade. Por exemplo, a república de Platão possuiria, evidentemente, inúmeras dificuldades em tornar-se real. Mas não é o mesmo com o contrato social de Rousseau? Contudo, a possibilidade de que estas respostas sejam dadas coloca definitivamente a questão da busca de uma resolução para as divergências entre interesse privado e interesse público, por exemplo. E a crítica de Marx em Para a Questão Judaica, ao papel do cidadão submetido por completo ao indivíduo burguês e, portanto, incapaz de cumprir o papel de representante do gênero humano, não visa, por sua vez, descartar a necessidade de constituição da humanidade enquanto gênero. Pelo contrário, ela visa, aqui também, superar o conteúdoirracional da sociabilidade burguesa, apresentado com uma forma racional pela filosofia. Ou seja, o Estado democrático-burguês, apresentado como solução para tal dicotomia é uma farsa, mas o é por estar ainda baseado na propriedade privada que exige um burguês egoísta, e não no ser humano genérico, que é traduzido especulativamente no cidadão.

Esta própria divisão entre o cidadão especulativo, e o indivíduo burguês realmente existente é uma chave interessante para o estudo marxista da relação entre direito e moral. Enquanto esta última está relacionada com as decisões particulares, a juridicidade justifica-se por apresentar-se enquanto decisões gerais instituídas em normas de convivência que devem ser seguidas por todos independentemente de seu convencimento pessoal. Como Mészáros aponta em seu A Teoria da Alienação em Marx, a mera existência do direito demonstra como a moral falha na sociabilidade burguesa em orientar a ação dos indivíduos em direção ao bem comum. No entanto, o direito por si só, destituído de qualquer orientação valorativa torna-se mero instrumento de arbítrio, ao fazer passar determinados valores particulares como genéricos. Enquanto a moral, destituída de legalidade jurídica, torna-se normatização inócua.

Ou antes, é transformada em justificação de sua própria não realização. Com diz o próprio Marx nos Manuscritos de 1844:

A moral da economia nacional é o ganho, o trabalho e a poupança, o ascetismo – mas a economia nacional promete-me satisfazer minhas carências – A economia nacional da moral é a riqueza em boa consciência, em virtude etc., mas como posso ser virtuoso se nada sou, como posso ter uma boa consciência se nada sei? – Está fundado na essência do estranhamento que cada esfera me imputa um critério distinto e oposto: um, a moral; outro, a economia nacional, porque cada uma é um estranhamento determinado do homem e cada uma fixa um círculo particular da atividade essencial estranhada; cada uma se comporta estranhadamente com relação à outra” (…) “Além disso, a oposição entre a economia nacional e a moral é também apenas uma aparência e, assim como é uma oposição, novamente não é oposição alguma. A economia nacional apenas expressa, a seu modo, as leis morais”.

Não há, portanto, uma relação verdadeira de pertencimento do indivíduo ao gênero, mas uma disputa do primeiro contra o último. Uma sociedade de mônadas que se chocam em favor de seus interesses egoístas. E que trará a seu turno, sua própria formulação moral. Afinal, foi nesta sociabilidade que surgiu a ideia da mão invisível, que permitiria que o homem seguisse seu interesse egoísta, assegurando-lhe que seu próprio enriquecimento individual estaria garantindo o enriquecimento de toda a humanidade. É esta disputa entre o ser humano genérico e seus indivíduos que justifica uma separação/imbricação tal entre direito e moral, já que é necessária uma normatização externa e repressiva que regule a guerra de todos contra todos, efetivamente existente na sociedade civil. E isto pode trazer apontamentos interessantes para a explicação da existência no ordenamento jurídico burguês de normas que estabelecem interesses genéricos como, por exemplo, a dignidade da pessoa humana não apenas como discurso ideológico, mas como princípio eficaz, ainda que sua eficácia permaneça no plano do dever ser, ou mesmo completamente adequada aos limites da reserva do possível burguesa. A figura do cidadão, apesar de especulativa, não tem origem, portanto, apenas da vontade dos filósofos. Ela representa a percepção de um gênero humano, de interesses genéricos e da necessidade efetiva de que estes interesses sejam satisfeitos.

A pesquisa marxista da filosofia do direito pode encontrar um campo rico de reflexões em temas como estes. A partir da inspiração trazida pela filosofia burguesa tradicional, criticada e garimpada em seu núcleo racional apresentar uma própria teorização marxista acerca das antinomias fundamentais da filosofia e daquelas especificamente importantes para a filosofia do direito. Tais reflexões, inevitavelmente, nos levarão ao debruçamento sobre um dos temas mais caros da filosofia jurídica: a liberdade. Entendê-la em suas relações com a necessidade de afirmação efetiva das potencialidades humanas, da realização do homem como um fim, da possibilidade de construção da vida humana de acordo com as normas postas pelo próprio gênero não estranhado, da superação da dicotomia entre valor e fato, significa, inclusive, entender os limites da própria pesquisa filosófica. Significa passar a se pôr em busca da transformação do mundo.


Lutando para Lutar: A Anel e a Construção de uma Alternativa para o Movimento Estudantil Combativo

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Para a Revista Crítica do Direito

Lutando para Lutar: A Anel e a Construção de uma Alternativa para o Movimento Estudantil Combativo

ELI MAGALHÃES

Certa feita, em um debate sobre a situação do movimento estudantil e o papel da União Nacional dos Estudantes (UNE), no ano de 2005, na Universidade Federal de Alagoas, um companheiro iniciou a atividade de maneira inusitada. Referindo-se a Gabriel García Márquez, em seu clássico Crônica de uma morte anunciada, arrematou que, como o escritor colombiano inicia seu livro, ele gostaria de iniciar o debate declarando a morte de seu personagem principal: a UNE.

Passados quase seis anos, é possível ser vista a seguinte notícia em inúmeros sítios da internet: UNE pede apoio a mantenedores de instituições de ensino superior particulares (http://www.abmes.org.br/abmes/noticias/detalhe/id/230). Durante a leitura da matéria, encontra-se a seguinte passagem:

Chagas [presidente da UNE] afirmou que a UNE está empenhada em fazer com que a educação possa se desenvolver no Brasil e ressaltou que muitas das batalhas têm sido vencidas junto com o setor privado. 'Nós sabemos do papel que o ensino particular tem desempenhado historicamente na estruturação da educação brasileira', reforçou, complementando que já foram superados alguns equívocos que impedem a visão clara da real contribuição do setor neste contexto”.

Ora, o leitor deve saber que uma Instituição de Ensino Superior privada é, na verdade, uma empresa. Uma empresa cujo objeto de atividade é a prestação de serviços na área de educação, é óbvio, mas ainda assim, uma empresa. Como se sabe, o objetivo principal de uma empresa (repetimos propositalmente este termo), pela sua própria manutenção, é a obtenção de lucro. O lucro, por sua vez, é também privado. E em um país em que 80% das matrículas no ensino superior estão no setor privado, e apenas 20% no setor público, este lucro não é pequeno.

A única contribuição do setor privado à educação nacional é a da transformação daquilo que é estabelecido como um direito fundamental de todos os cidadãos em mercadoria. A educação é garantida a você, contanto que tenha dinheiro para pagar por ela. Assim, no Brasil, menos de 15% da juventude tem acesso ao ensino superior. Que espetacular “contribuição”!

A UNE, no entanto, a reconhece. Não só busca parceria com a ABMES (Associação Brasileira de Mantenedores de Ensino Superior), como, assim diz a matéria de que tratamos, pede para que o seu 52º Congresso Nacional, seja financiado por ela.

Historicamente o movimento de luta pela educação combate pela garantia de uma educação pública universalizada e de qualidade. Ora, porque uma associação de mantenedoras de instituições privadas financiaria tal luta? É um completo contra senso doar fundos para aquele que declara uma luta feroz contra você. Ainda que não passe de uma proposta, que partiu da própria UNE, a ideia de financiamento de seu principal espaço político nacional por parte do setor empresarial da educação significa duas coisas simples: primeiro, a entidade abandonou completamente sua independência financeira do grande capital e especialmente do capital adquirido através da venda de um direito o qual ela deveria defender; segundo, o abandono desta independência financeira é causa e consequência do abandono de sua independência política, para permanecer na luta pela qualidade e garantia da educação para todos, em defesa da educação pública.

Passados seis anos, então, parece-nos que a forma de iniciar o debate fazendo referência à García Márquez continua válida. A UNE morreu. Aquela União Nacional dos Estudantes, que lutou, durante os períodos mais negros da ditadura militar, contra o governo repressor e seus planos de desbaratar completamente a educação pública no país através dos acordos MEC-USAID, não existe mais infelizmente. Aquela União Nacional dos Estudantes que levantou a palavra de ordem “O Petróleo tem que ser nosso!” pela completa estatização do petróleo nacional, hoje declara-se apoiadora incondicional do governo que organiza leilões das jazidas nacionais para as Big Oil's mundiais. Enche a boca para falar que defende 50% do Pré-sal para a educação, mas esquece de dizer que este 50% é apenas de seu fundo social, que não passa de míseros 9% da riqueza que ele representa, ficando 91% para a burguesia.

A UNE de hoje, recebe R$ 10 milhões do Governo Federal e assina embaixo de todos os seus projetos privatistas para a educação. É a UNE que apoia o financiamento público para universidades privadas com o ProUni (através da isenção de impostos de universidades privadas, já foi gasto o dobro do orçamento da educação e da saúde juntos através deste programa, que não foram investidos no setor público); a UNE que apoia a expansão precarizada das universidades federais com o ReUni; a UNE que apoia a avaliação punitiva e ranqueadora do SINAES (que inclui o ENADE, uma cópia piorada do Provão de FHC) e um longo etc. E hoje, nos Congressos da UNE, existem mais falas de ministros e secretários do governo, do que de estudantes e trabalhadores. E a entidade gasta mais tempo em reuniões de gabinete, do que na luta de rua pelos direitos dos estudantes.

Portanto, a UNE morreu, mas para a luta dos estudantes. Ela continua existindo, com bastante força inclusive, mas do outro lado do movimento pela educação. Apoiando toda a política de reforma universitária que foi implementada durante dois mandatos de Lula e que continua com o Plano Nacional de Educação de Dilma.

Frente a isto, em 2009 surge a Assembleia Nacional dos Estudantes – Livre. A ANEL é um acúmulo de um setor do movimento que desde 2003 rompe com a União Nacional dos Estudantes e declara-se independente dos governos, de suas políticas e de seu dinheiro. O objetivo principal da entidade é a recuperação da autonomia do movimento estudantil e sua reorganização para o combate em defesa do direito à educação pública, gratuita e de qualidade. No último feriado de Corpus Crhisti, de 23 a 26 de Junho, foi realizado o seu primeiro Congresso Nacional na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, quando a entidade completava dois anos de existência.

Durante o Congresso, foram feitos debates e propostas para a atual situação do movimento estudantil nacional. Ele inicia com um balanço positivo dos dois anos de atuação da ANEL. Neste período, a entidade tocou campanhas importantes como de solidariedade às vítimas do terremoto do Haiti em conjunto com a retirada das tropas brasileiras que ocupam militarmente o país; pelo Fora Sarney, envolvido com casos de corrupção, e pelo fim do Senado; pela organização de um dia de luta nacional contra o aumento das passagens de transporte público; pela criminalização da homofobia etc. Recentemente, a ANEL-RJ esteve intimamente envolvida com a luta dos bombeiros unificada com aquela dos professores do estado, que chegou a mover 50 mil pessoas no Rio de Janeiro. A ANEL-AL esteve entre as principais entidades das mobilizações pelo Fora Téo, contra o governo tucano do estado, com passeata de quase 2 mil pessoas. A ANEL-RN segue firme na luta pelo Fora Micarla. E estes são apenas alguns exemplos.

O Congresso reafirmou os quatro princípios da entidade, que permitiram que estas campanhas pudessem ser tocadas: ampla democracia interna; aliança com a classe trabalhadora; independência financeira; e ação direta. As falas de entidades convidadas ao evento confirmam o compromisso da ANEL com as lutas dos trabalhadores e de todos os explorados e oprimidos. Durante os debates, os estudantes presentes puderam receber saudações de sindicados e movimentos como o ANDES-SN, o MST, o MTST, o comando de Greve dos trabalhadores da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, do sindicato da construção civil de Fortaleza, da CSP-Conlutas, sem falar em saudações internacionais de estudantes participantes do movimento 15-M espanhol, responsável pelas recentes ocupações de praças no país, de um estudante suíço que fez um relato sobre as lutas da juventude europeia como um todo, estudantes argentinos que participaram do recente estudiantazo em 2010, com ocupação da Universidade de Buenos Aires, de participantes da 3ª Intifada Palestina, além do relato da própria militante enviada pela ANEL para a cidade do Cairo no Egito, Clara Saraiva. Foram pontos fortes as saudações feitas pela professora Amanda Gurgel e por uma das lideranças do movimento dos bombeiros no Rio de Janeiro, o Cabo Daciolo.

Os debates foram organizados em plenárias e grupos de discussão e decorreram com bastante democracia e ampla abertura de participação dos estudantes. Nem sempre foram calmos, mas ocorreram mesmo momentos de polêmicas acaloradas. O tema do apoio aos bombeiros chegou a dividir o plenário, ficando uma ampla maioria na defesa do apoio, enquanto a minoria, organizada em torno do bloco Anel às Ruas (algo próximo a 100, dos 1700 participantes), defendia uma posição de contrariedade ao apoio à luta da categoria combinada com uma oposição a Sérgio Cabral.

Este contudo, não foi o principal tema do congresso, mas cremos que outros três foram de importância capital: a aprovação e organização de uma campanha nacional de exigências de 10% do PIB para a educação já e contra o PNE de Dilma; as resoluções que denotam a preocupação dos estudantes da ANEL com a necessidade de trabalho de base, revertendo anos de atraso deixados pela UNE neste campo, numa luta audaz pela reconstrução do movimento estudantil brasileiro em cada universidade e escola do país; as resoluções resultantes dos debates acerca do combate às opressões como racismo, machismo e homofobia, que foram temas acerca dos quais os estudantes dedicaram parte considerável das discussões, com direito a atos políticos durante o próprio congresso contra o machismo e a homofobia.

Para além da programação oficial, muitos eventos eram realizados paralelamente, nos espaços de folga. Foram reuniões de estudantes por cursos, que discutiram os problemas específicos de suas áreas; reuniões de coletivos e bancadas; lançamentos de livros; palestras sobre a situação internacional etc. Dentre esta miríade de atividades, nos interessou particularmente o lançamento do livro Sociedade de classes, direito de classes, de Juary Chagas. A atividade foi construída em um dos espaços vagos da programação, logo após um dos almoços. Juary, que lançou seu livro pela Editora Sundermann, apresentou em linhas gerais sua obra. Seu discurso foi acompanhado por um punhado de estudantes de direito que levantaram temas de debates como o papel do direito na dominação dos oprimidos, os equívocos das estratégias reformistas que se limitam na luta por direitos, a necessidade de se pensar o direito na transição para o socialismo. Também acompanhou o debate a professora Amanda Gurgel, amiga e camarada que milita no mesmo estado do autor do livro. Após o debate, os estudantes de direito aproveitaram para fazer uma reunião para a discussão de problemas de seus respectivos cursos.

Na relatoria das resoluções da plenária final do Congresso da ANEL, o leitor poderá encontrar inúmeros outros pontos relevantes de discussão. Seria impossível nos limites deste texto comentar todas as propostas aprovadas, que incluem temas como: democratização das comunicações no país; luta contra o agro negócio; luta em defesa do meio ambiente e contra o Código Florestal de Aldo Rebelo (PCdoB e ex-diretor da UNE); contra a criminalização dos movimentos sociais (debate que contou com a presença de militantes presos no Rio de Janeiro durante a visita de Obama); pela construção livre da arte e cultura e contra a lei Rouanet; a preocupação com um esporte livre do capital e voltado para a realização humana, como não acontece com os mega eventos que vêm sendo preparados como a Copa do Mundo e as Olimpíadas etc.

Recentemente, a professora Amanda Gurgel recusou um prêmio oferecido pelo Pensamento Nacional de Bases Empresariais (PNBE), que a titulava como importante brasileira na construção da educação. A recusa da professora se deu por um motivo simples: não se luta pela educação ao lado dos empresários que lucram com a venda dela. O recado da ANEL é, portanto, muito claro. O dinheiro e o apoio do Governo Federal e da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior que fique com a UNE. Os estudantes que constroem a ANEL ficam com Amanda Gurgel, com os trabalhadores que lutam em Jirau, na USP, e em todo o país, com a juventude revolucionária do mundo árabe, com a juventude em luta da Europa e do resto do mundo, com os palestinos que se enfrentam com a política reacionária de Israel, e, especialmente, com a luta por uma educação efetivamente pública, de qualidade e universal. Agora é voltar para as universidades, para as escolas, e enfrentar o marasmo que foi deixado pela UNE. É hora de sacudir o movimento estudantil.

A verdadeira democracia deve ser fonte de inspiração para democracia real

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Originalmente escrito para a Revista Crítica do Direito. www.criticadodireito.com.br



A verdadeira democracia deve ser fonte de inspiração para democracia real


postado em 31/05/2011 16:43 por Revista Crítica do Direito - RCD

ELI MAGALHÃES



A partir da segunda quinzena de maio, o mundo pôde acompanhar a movimentação da juventude espanhola, que foi seguida pela classe trabalhadora daquele país. A praça Puerta del Sol, em Madrid, chegou às eleições do dia 21 de Maio abarrotada de manifestantes. O domingo do pleito ficou conhecido como o “dia da reflexão”. Em um edifício alto próximo à praça era pendurado um enorme cartaz com as palavras de ordem: “Abaixo o regime. O povo sem medo”.


A Espanha é um dos países denominados enquanto PIGS. Ao longo das últimas décadas, as políticas levadas à frente, em grande parte pelos socialistas do PSOE, vieram minando as garantias trabalhistas e sociais do país. Hoje, os índices de desemprego chegam à 20% da população. O que, inclusive, deve servir de reflexão para os brasileiros que ainda acreditam que a flexibilização das leis trabalhistas pode servir para o aumento do emprego formal. E no caso espanhol, observa-se tais taxas em um país em que 39% da população entre 25 e 34 anos possui ensino superior. A maior parte sem trabalho.


Com a crise mundial, e com uma explosão da bolha imobiliária espanhola, o governo de Zapatero, com seu governo apoiado por empresas multinacionais e banqueiros, tem levado à frente uma série de “reformas estruturais” que visam minar ainda mais os sistemas públicos de educação, saúde, previdência etc. De fato, uma das poucas garantias que ainda não foram tocadas é o seguro desemprego. O governo do PSOE, é apoiado, por outro lado, pelas burocracias sindicais da CC.OO e UGT, que fazem o trabalho sindical de refrear as mobilizações que se levantam contra os planos de austeridade.


Zapatero foi derrotado nas eleições do dia 21. O PP, partido tradicional da direita espanhola, saiu das eleições com 37% dos votos, contra 27% do PSOE. No entanto, a verdadeira força eleitoral do pleito foi a opção pela abstenção, 33% dos votos. Isto deve se explicar pela perda de confiança do povo em seu tradicional partido socialista, mas sem uma virada à direita. Há regiões em que o nível de abstenção é ainda maior, como entre os bascos, e na cidade de Barcelona, onde chegou a 47% dos eleitores.


Desde o 15 de maio, a população foi às ruas, com a juventude à frente, seguida pelo povo trabalhador. Organizada pela internet, a manifestação reuniu em Madrid algo em torno de 50 mil pessoas. Número não esperado por seus convocadores. Em Barcelona 15 mil, em Sevilha 6 mil. O governo adotou uma postura de repressão que resultou na prisão de 24 pessoas. Na noite do dia 16, o número de pessoas nas praças era ainda maior.


A manifestação do 15 de maio foi convocada pela internet com a seguinte palavra de ordem: “Democracia Real Já! Não somos mercadorias em mãos de políticos e banqueiros!”. Entre seus inimigos declarados, estavam tanto o governo do PSOE, quanto o PP e as burocracias sindicais da CC.OO e da UGT. A democracia se rebela contra o Estado e seus diversos agentes. Afinal, como diziam os manifestantes, “PSOE e PP. La misma mierda és”. A direita clássica do país focou sua campanha eleitoral acusando o PSOE como responsável pela crise econômica. No entanto, calou-se quanto às medidas impostas pelo FMI e pela União Europeia para sanar a crise. Em outras palavras, seus alvos são os mesmos do governo: a juventude e os trabalhadores.


Com os direitistas tendo 37% do votos das últimas eleições, o que se pode esperar em termos de mudança das políticas advindas do Estado? Basicamente nada para melhor, se não algo a piorar. É necessário refletir-se acerca de como a “democracia consolidada” da Espanha refletiu o descontentamento popular. Com 33% de eleitores recusando-se a votar em um país onde, inclusive, vigora um sistema de cláusula de barreira impedindo o surgimento de novos partidos, semelhante ao que se tenta implementar no Brasil, a direita sai vitoriosa para aplicar, justamente os planos de política econômica repudiados pela população em mobilização.


O grito por “Democracia Real”, se torna plenamente justificado em uma situação como esta. Mas o que de fato ele deve significar?


A democracia, na Espanha (e isto é algo comum ao resto do mundo), não tem servido para fazer com que as decisões políticas do país sejam tomadas efetivamente pelo povo. Pelo contrário, o Estado vem se comportando de maneira cada vez mais afastada deste, privilegiando interesses econômicos frente às carências apresentadas pela população. Daí a rejeição ao regime apresentada pelos espanhóis nestas eleições.


O que seria então uma “Democracia Real”, se não uma forma política em que o povo, livremente organizado, pudesse tomar, por si, as decisões acerca das prioridades de seu governo? Seria portanto, algo mais profundamente enraizado nas forças da população do que a “democracia existente”. O caso da Espanha obriga a todos a repensar as formas políticas as quais estão submetidas as grandes democracias do mundo. E a semelhança das manifestações espanholas contra o regime, em suas praças, com as manifestações egípcias contra uma ditadura escancarada é, pelo menos, curiosa.


Em sua luta contra a monarquia alemã, Marx declarou que “a democracia parte do homem e faz do Estado o homem objetivado … O homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em razão do homem, é a existência humana, enquanto nas outras formas de Estado o homem é a existência legal … daí que na verdadeira democracia o Estado político desaparece. O que está correto, considerando-se que o Estado político, enquanto constituição, deixa de valer pelo todo”.


A preocupação do autor destas palavras era recuperar as forças sociais sugadas pelo Estado monárquico para o seu real detentor, o “povo concreto”. É dizer que, ao invés de o povo servir ao Estado em seus desígnios, este último é que deveria representar os assuntos de interesse do primeiro. O Estado deveria, portanto, ser entendido apenas como um dos momentos da vida humana, e não como aquele que possui a prioridade sobre todas as outras partes, e por isto com legitimidade de tomar suas decisões de forma afastada e, muitas vezes, contrárias à vontade popular. A verdadeira democracia, portanto, seria a forma política em que o Estado deixa de valer por todos, e passa a se submeter às necessidades humanas de seus súditos. Ele se torna o homem objetivado. O homem valendo como princípio universal de suas decisões.


A esta altura, Marx não havia percebido definitivamente, como fará mais tarde, que as diversas lutas no seio da sociedade civil não permitem que se possa falar em um povo concreto. Antes, é necessário perceber a sociedade em classes sociais sustentadas em seus próprios interesses e dividas pelo processo produtivo capitalista e pela propriedade privada. Ele chegará a esta conclusão ao notar que seu projeto de uma verdadeira democracia não poderia ser cumprido enquanto o próprio povo concreto fosse entrecortado pelas contradições que são postas por estas condições. Em uma verdadeira democracia não poderia ser cabível a exploração do homem pelo homem. Sem a superação desta, os desejos das elites economicamente dominantes continuariam a afastar as forças populares de sua própria gestão. O Estado continuaria sendo um ente afastado e antagônico ao povo, agora entendido como as classes trabalhadoras.


Isto explica porque as modernas democracias, baseadas na exploração do trabalho assalariado, na produção capitalista e na propriedade privada, continuam sem representar a vontade popular. Ao contrário, o Estado de hoje, se não mais serve ao monarca soberano, serve, por mais democrático que se apresente, à ditadura dos grandes bancos e das grandes empresas multinacionais. Serve à ditadura das grandes agências do capital como FMI, Banco Mundial etc., principais responsáveis pela crise e pelos planos de austeridade que hoje pesam sobre o mundo europeu e os outros continentes.


Ao perceber as bases da sociedade capitalista, Marx foi transitando, mantendo constante apenas a necessidade da revolução, de seu desejo pela verdadeira democracia, para seu programa em direção ao comunismo. Superar a propriedade privada se torna o requisito para superar o afastamento do poder político da classe trabalhadora. O requisito para recuperar as forças sociais roubadas pelo Estado, na constituição de um regime político em que o povo decida como se organizar e como suprir suas necessidades materiais. Neste entremeio, a revolução socialista se torna uma necessidade para chegar-se à verdadeira democracia, aqui, com um conteúdo distinto, muito mais próximo à ideia de comuna (como em Paris) do que de Estado.


A spanishrevolution, declarou-se, desde de início, muito mais próximo do que se pode pensar da verdadeira democracia, ao colocar que os espanhóis não são mercadorias nas mãos das multinacionais e dos banqueiros. O desejo é um regime político radicalmente democrático e um regime econômico alternativo ao liberalismo selvagem que enfrentam. Se eles perceberem a necessidade de superar as bases econômicas de sua democracia atual, estarão no caminho certo para fundar sua “Democracia Real”. No Brasil, as manifestações populares seguem sendo reprimidas brutalmente pelo Estado Democrático de Direito, tal qual ocorreu na Marcha da Maconha em São Paulo. Isto forçou os manifestantes a convocarem uma Marcha da Liberdade. Estaremos próximos de seguir o exemplo espanhol? Estaremos próximos de convocar uma Marcha da “Liberdade Real”?

Estado laico. O que é isso, companheira?

sábado, 28 de maio de 2011

Carta do grupo Católicas pelo direito de decidir, à Presidenta Dilma.

Estado laico. O que é isso, companheira?
Carta aberta de Católicas pelo Direito de Decidir à Presidenta Dilma Rousseff sobre a polêmica criada em torno do kit anti-homofobia




Presidenta Dilma,

Estamos estarrecidas! A polêmica criada em torno do kit anti-homofobia e o recuo do governo federal ante as pressões vindas de alguns dos setores mais conservadores e preconceituosos da sociedade nos deixou perplexas. E temerosas do que se anuncia para uma sociedade que convive com os maiores índices de violência e crimes de morte cometidos contra pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersex (LGBTTI) do mundo. Temos medo de um retorno às trevas, senhora Presidenta, e não sem motivos.

A vitoriosa pressão contra o kit anti-homofobia da bancada religiosa, majoritariamente composta por conservadores evangélicos e católicos, em um momento em que denúncias de corrupção atingem o governo, traz de volta ao cenário político a velha prática de se fazer uso de direitos civis como moeda de troca. Trocam-se, mais uma vez, votos preciosos e silêncio conivente pelo apoio ao preconceito homofóbico que retira de quase vinte milhões de brasileiros e brasileiras o direito a uma vida sem violência e sem ódio. A dignidade e a vida de pessoas LGBTTI estão valendo muito pouco nesse mercado escuso da política do toma-lá-dá-cá, senhora Presidenta! E o compromisso com a verdade parece que nada vale também.

Presidenta, convenhamos, a senhora sabe que o kit anti-homofobia é um material educativo, que não tem por finalidade induzir jovens a se tornarem homossexuais, até mesmo porque isso é impossível, como tod@s sabemos. Não se induz ninguém a sentir amor ou desejo por outrem. Mas respeito, sim. E ódio também, senhora Presidenta... ódio é possível ensinar! Poderíamos olhar para trás e ver o ódio que a propaganda nazista induziu contra judeus, ciganos, homossexuais. Porém, infelizmente, não precisamos ir tão atrás no tempo. Temos terríveis exemplos recentes de agressões covardes e aviltantes a pessoas LGBTTI e o enorme índice de violência contra as mulheres acontecendo aqui mesmo, em nosso próprio país.

Quando a senhora afirma, legitimando os conservadores homofóbicos, que é contra a propaganda da "opção" sexual, faz parecer que alguém pode, de fato, "optar" por sentir esse ou aquele desejo. Amor, desejo, afeto não são opcionais, ninguém escolhe por quem se apaixona, senhora Presidenta! Mas se escolhe ferir, matar, humilhar.

Quando a senhora diz que todo material do governo que se refira a "costumes" deve passar por uma consulta a "setores interessados" da sociedade antes de serem publicados ou divulgados, como estampam hoje os jornais, ficamos ainda mais perplexas. De que "costumes" estamos falando, senhora Presidenta? E de que "setores interessados"? Não se trata de "costumes", mas de direitos de cidadania que estão sendo violados recorrentemente em nosso país e em nome de uma moral religiosa conservadora, patriarcal, misógina, racista e homofóbica. Trata-se de direitos humanos que são negados a milhões de pessoas em nosso país!

E "setores interessados", nesse caso, deveria significar a população LGBTTI e todas as forças democráticas do nosso país que não querem ter um governo preso a alianças políticas duvidosas, ainda mais com setores "interessados" em retrocessos políticos quanto aos direitos humanos da população brasileira.

O país que a senhora governa ratificou resoluções da ONU tomadas em grandes conferências internacionais, em Cairo (1994) e em Beijing (1995), comprometendo-se a trabalhar para que os direitos sexuais e os direitos reprodutivos sejam reconhecidos como direitos humanos. No entanto, até hoje pessoas LGBTTI morrem por não terem seus direitos garantidos. Mulheres morrem pela criminalização do aborto e pela violência de gênero.

Comemoramos quando uma mulher foi eleita ao cargo máximo de nosso país. Ainda mais porque, como boa parcela da sociedade, levantamos nossa voz contra o aviltamento do Estado laico, ao termos um uso perverso da religião nas campanhas eleitorais de 2010 para desqualificar uma mulher competente e com compromisso com a dignidade humana. Antes ainda, levantamos nossa voz a favor do III PNDH, seguras de que deveria ser um instrumento de aprofundamento do respeito aos direitos humanos em nosso país. Agora não temos o que comemorar, senhora Presidenta! Parece que o medo está, de novo, vencendo a verdade. E a dignidade.

Infelizmente, temos de - mais uma vez! - vir a público exigir que os princípios do Estado laico sejam cumpridos. Como a senhora bem sabe, a laicidade é essencial à democracia e não se dá pela simples imposição da vontade da maioria, pois isso resulta em desrespeito aos direitos humanos das minorias, sejam elas religiosas, étnico-raciais, de gênero ou orientação sexual. Não existe democracia se não forem respeitados os direitos humanos de todas as pessoas. Impor a crença religiosa de uma parcela da população ao conjunto da sociedade coloca em risco a própria democracia, já que os direitos humanos de diversos segmentos sociais estão sendo violados. Portanto, senhora Presidenta, não seja conivente! Não permita que alguns setores da sociedade façam do Estado laico um conceito vazio, um ideal abstrato.

Como Católicas pelo Direito de Decidir, repudiamos o uso das religiões neste contexto de manipulação política e afirmamos nosso compromisso com a laicidade do Estado, com a dignidade humana e nosso apoio ao uso do kit educativo pelo fim da homofobia nas escolas brasileiras.

Criticar a democracia pode ser a melhor forma de defendê-la.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Texto originalmente produzido para a www.criticadodireito.com.br.
Importante lembrar a todos que o código já foi aprovado na Câmara Federal e se encaminha para o Senado.

Criticar a democracia pode ser a melhor forma de defendê-la.

postado em 14/05/2011 13:25 por Revista Crítica do Direito - RCD ELI MAGALHÃES


O recente impasse na Câmara dos Deputados acerca da reforma do Código Florestal acaba por tornar-se um interessante laboratório para que se perceba o real funcionamento deste fórum. Após quase quinze horas de negociações apenas dentre os deputados da base governista, o próprio líder do governo, Vacarezza (PT), vai ao púlpito pedir pelo adiamento das votações. Segundo ele, por um lado, o texto do relator Aldo Rebelo (PCdoB) estava alterado em relação aos pontos que teriam sido acordados anteriormente. Por outro, dentre deputados de partidos governistas, havia um movimento em direção a uma votação congruente com o destaque apresentado pela oposição DEM-PSDB. A votação foi adiada para a próxima terça feira, 17 de maio.


A proposta original de Aldo Rebelo continha como pontos, a flexibilização das APP's (áreas de preservação permanente) deixando que os estados tenham a prerrogativa de reduzir em até 50% a área de preservação da vegetação próxima aos rios (que varia de 30 a 500 metros), e definam se seria possível a exploração de topos de morros e encostas. Além disto, a proposta do deputado isenta propriedades de até quatro módulos rurais de qualquer reserva legal de vegetação original, podendo seus proprietários, portanto, desmatar completamente. Esta reserva legal varia entre 80% na região amazônica, 35% no Cerrado e 20% nas demais regiões. Por fim, outro ponto polêmico é a anistia dos desmatadores de um período de cinco anos para cá. Eles não teriam o dever pagar multas, ou de recompor a área desmatada segundo a proposta do “comunista”.


Os deputados governistas firmaram apenas um acordo: o de que a flexibilização das áreas de preservação permanente seria feito através de decreto presidencial. Segundo seu líder, o governo não concordava com a alteração isenção da reserva legal para propriedades de até quatro módulos rurais, mas “cedeu” isto nas negociações buscando consenso.


Os trabalhos da quarta feira, 11 de maio, foram encerrados em meio a uma verdadeira baixaria, com Aldo Rebelo sendo chamado de traidor pelos governistas, ao mesmo tempo em que acusava o marido de Marina Silva de contrabandista de madeira no Acre. E meio a tudo isto, fica a questão: por quê alterar o Código Florestal?


Como se pode notar facilmente, todas as alterações vão no intuito de permitir um maior desmatamento. O relator diz defender estas posições em prol dos pequenos agricultores que teriam problemas com a atual legislação. Coloca, ainda, que estas alterações são necessárias ao desenvolvimento da economia nacional, e que há, na verdade, um lobby do imperialismo contrário a isto. Aldo Rebelo, portanto, tenta passar um verniz de “interesse nacional” ou, se quisermos, “interesse universal” dos brasileiros às suas propostas. E, assim, louva tal processo “democrático” na tentativa de conquistar legitimidade para seu relatório.


Ora, em décadas a fio de mobilização de pequenos camponeses e de trabalhadores sem terra, pode-se recordar de uma tal oposição destes ao atual Código Florestal que data de 1965? Não cremos. Inclusive, frente à proposta do deputado do PCdoB, os movimentos do campo colocaram-se em defesa do Código de 1965. Assim declarou a Via Campesina:


A Via Campesina Brasil reafirma a sua posição pela manutenção do atual Código Florestal Brasileiro. Rechaçamos a proposta de alteração apresentada pelo deputado Aldo Rebelo, que incorpora as grandes pautas dos ruralistas, como redução de Área de Preservação Permanente e anistia das multas por desmatamentos”. (fonte)


Aldo Rebelo não mente em dizer que defende interesses. Sua desfaçatez está em querer fazer com que acreditemos que estes interesses advém dos movimentos camponeses. E eis uma tarefa ainda mais difícil, quando toda a bancada ruralista (incluindo a governista) se prepara para a declaração de uma sonora aprovação às alterações propostas. Os principais aliados do relator durante toda esta celeuma foram Kátia Abreu e Ronaldo Caiado (DEM), ruralistas declarados, e demais dirigentes da Confederação Nacional da Agricultura. Aldo Rebelo, por seu lado, teve doações de R$ 130 mil, de latifundiários, e R$ 70 mil, da Bunge Fertilizantes. Enfim, o “comunista” tornou-se fiel representante dos ruralistas, chegando a bater de frente com o próprio governo do qual é base aliada.


Os “interesses universais” caem por terra quando é notável que a alteração contém reivindicações históricas da bancada ruralista, representantes dos verdadeiros responsáveis pelo desmatamento para fronteira pecuária e expansão do agronegócio. Os valores que estão em jogo aqui são os interesses postos pela propriedade privada e pelo capital frente à preservação de algo que vem se tornando a dúvida das atuais gerações: o meio ambiente. Fica demonstrado que para o capital seus insaciáveis e incontroláveis impulsos de autovalorização são mais importantes do que a preservação da própria vida do planeta.


O Parlamento, que deveria segundo todas as teorias liberais, e segundo a forma como Aldo Rebelo defende sua proposta, pautar-se pelos “interesses universais”, abaixa sua cabeça frente à vontade de uma classe específica e que está em expresso confronto com as necessidades da ampla maioria. Aldo Rebelo cria um apoio popular imaginário para seu projeto. Cria também um rigoroso critério científico para o mesmo, mesmo quando entidades como a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência e a Acadêmia Brasileira de Ciência lançam longo parecer contrário às alterações propostas. E mesmo o Ministério Público Federal, baseado em parecer preparado por sua Câmara do Meio Ambiente, declarou-se contra as alterações e promete pugnar por sua inconstitucionalidade, levando o debate para o judiciário.


Ao mesmo tempo, o único acordo que o governo federal se dispôs a fazer é irrisório em relação à substância do texto proposto. O grande acordo que está por trás disto é que o desmatamento será aprovado, pois esta questão se colocou de fora das discussões na Câmara. As conversações a portas fechadas demonstraram que o capital e a propriedade privada foram mais “universais” do que o povo, a ciência e a justiça. É impossível não lembrar de palavras escritas há 168 anos sobre a democracia tal como está posta:


Mais enigmático se torna esse fato quando vemos que a cidadania de Estado rebaixa mesmo a comunidade política dos emancipados políticos a mero meio (…) que, portanto, declara o citoyen [cidadão] servidor do homme egoísta; degrada a esfera em que ele se comporta como ser genérico à esfera em que ele se comporta como ser parcelar; finalmente, não é o homem como citoyen, mas o homem como bourgeois [burguês] que é tomado por homem verdadeiro e propriamente dito”. (Marx em Para a Questão Judaica).


Marx escreveu este texto em meio a uma polêmica acerca da possibilidade de os judeus, na Alemanha monarquista, terem acesso a direitos políticos e sociais. Ele viu como necessário a crítica da democracia para defender que os judeus fosse contemplados por ela, já que se imaginava que, por serem religiosos, não poderiam possuir direitos em um Estado que se pretendesse laico. Criticando a emancipação política, as revoluções democráticas que haviam ocorrido em França e na Inglaterra, ele demonstra que ela não se confunde com a emancipação humana, em que os homens estariam tão preenchidos por suas forças próprias, que não precisariam, por exemplo, da religião.


Marx, portanto, critica a democracia como uma liberdade parcial. Como meio caminho até a emancipação verdadeira. Critica a democracia para, ressalte-se, defender a sua própria ampliação, a sua extensão aos judeus. É justamente o caminho contrário a Aldo Rebelo, que louva-a, no intuito de reduzi-la, diminuir os direitos dos povos a um meio ambiente saudável. A proposta de Aldo Rebelo demonstrou como a crítica de Marx foi aguda. O cidadão, o homem público, foi degradado à esfera dos interesses egoístas do homem privado, do burguês. Esta situação ocorre constantemente, e continuará ocorrendo, enquanto as bases sociais da própria democracia forem a propriedade privada, o capital e a exploração do homem pelo homem. Conquistar a emancipação humana, é a chave para que a humanidade se livre dos interesses egoístas, e possa ter acesso a seus interesses universais. Dada a avançada destruição do planeta, em termos ambientais e sociais, esta é uma necessidade cada vez mais urgente. Enquanto isto, criticar a democracia, como demonstrou Marx, pode ser a melhor forma de defendê-la.